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sexta-feira, 3 de fevereiro de 2012

Intercâmbio

"Ao raiar da aurora, ensinei a Phanishwar as orações judias da manhã, e ele mostrou-me como começar o dia com os jainas. Começou por entoar a palavra nisibi, que queria dizer "abandono", disse, e que significava o entrarmos num espaço sagrado. Depois, fez-me rodar três vezes em torno do centro da cela, onde deveria estar a imagem em talha de Parsva a subir para o céu por uma serpente enrolada, se não lhe tivesse sido confiscada pelos soldados portugueses. Espargimos ambos água sobre o santo invisível. E então era chegada a altura de lhe oferecer arroz, doces e fruta.
 - Ai, e agora, que havemos de fazer? - gemeu Phanishwar. - Fico tão confuso aqui dentro que não me lembrei de guardar nada do meu jantar para ele."

Ler por aí... em Fevereiro 2012

terça-feira, 31 de janeiro de 2012

De que é feita a memória?

" - De que pensas tu que é feita a memória? - perguntou o meu pai.
Vendo-lhe a húmida ternura no olhar baixo e a mão a tremer no meu ombro, percebi que a minha mãe lhe estava a acariciar os pensamentos. Já fora enterrada há mais de dois anos, e fazer ele esta pergunta tão adulta a um rapaz de sete anos dava bem a dimensão da dor que continuava a sentir.
 - Não sei, papá - respondi encolhendo os ombros, já que era demasiado novo para achar que me valia a pena arriscar uma conjectura. Mas, quando ele retirou a mão, o medo adejou as asas aos meus ouvidos. - Talvez seja feita de tudo o que já vi - apressei-me a acrescentar (...)"

Ler por aí... em Fevereiro 2012

terça-feira, 25 de janeiro de 2011

Funchal I

A campainha pareceu ecoar longamente, desdobrando sons no interior de um vasto espaço vazio. No passeio, aguardando que lhe abrissem a grande porta pintada de verde-escuro, Carlota reviu, de súbito, trazida milagrosamente pelas memórias da infância, a imagem de um austero pátio empredado a preto e branco, de tecto em abóbada, paredes altas e um óculo rasgado, ao fundo, por onde jorrava o sol e se avistavam copas largas de árvores.
...
E foi mirando em volta e reencontrando os canapés de vinhático e palhinha, juncados de almofadas, as cantoneiras pejadas de pequenas peças de Sèvres e Dresden, as amplas cadeiras de braços, as avencas luxuriantes em vasos de porcelana e, até o espelho, um espelho enorme, de exuberante moldura dourada, que tanto a deslumbrara no passado.

Ler por aí... em Janeiro 2011
Ilhas Contadas [O Rapto Segundo Teodora]
Helena Marques

Horta

A cidade acolhe-se ao seu habitual tecto de nuvens, de onde brota uma poalha húmida que não chega a ser chuva, mas deixa gotículas brilhantes sobre os cabelos, as roupas, as plantas, os automóveis. Como fez ontem e repetirá amanhã, Lúcia dirige-se a casa da tia Maria da Luz para acompanhá-la até à hora do jantar.
...
Os livros constituem o departamento de Lúcia, é ela quem lê para a tia, sobretudo quem relê, já que Maria da Luz prefere reler os livros que amou toda a vida, livros que ambas conhecem quase de cor, mas em que sempre acabam por fazer pequenas, preciosas descobertas.
...
«Quer que leia, tia?»
Maria da Luz sorri e faz um aceno de concordância.
Lúcia abre Mau Tempo no Canal, na página assinalada pelo marcador. Muitos anos antes, a tia havia-lhe falado da incomodidade e da ofendida reprovação com que fora recebido, nalguns sectores da vida faialense, o livro de Vitorino Nemésio.

Ler por aí... em Janeiro 2011
Ilhas Contadas [Os Despojos]
Helena Marques

Foto retirada do site Mapa de Portugal

Iona

Camila e eu gostamos de vaguear pelos claustros, cada um sentindo a insubstituível companhia do outro e saboreando juntos cada momento vivido nesta ilha, em cuja sedução se funde a prodigiosa história de fé cumprida pela vontade do homem que elegeu Iona, minúsculo ponto nos mapas, para base de lançamento da desmedida grandeza do seu sonho.
...
A medida do tempo em Iona deixa-nos perplexos. As horas parecem lentas e generosas, distendidas, mas afinal, quando um inesperado desejo nos compele a consultar a agenda, verificamos que já passaram demasiados dias dos sete de que dispunhamos.

Ler por aí... em Janeiro 2011
Ilhas Contadas [Regresso a Iona]
Helena Marques

Foto retirada do site Staffhouse

sexta-feira, 5 de março de 2010

Homem prático

Agora me ocorre que tanto o Eça como o Balzac se sentiriam os mais felizes dos homens, nos tempos de hoje, diante de um computador, interpolando, transpondo, recorrendo linhas, trocando capítulos, E nós, leitores, nunca saberíamos por que caminhos eles andaram e se perderam antes de alcançarem a definitiva forma, se existe tal coisa, Ora, ora, o que conta éo resultado, não adianta nada conhecer os tenteios e hesitações de Camões e Dante, O senhor doutor é um homem prático, moderno, já está a viver no século vinte e dois,

História do Cerco de Lisboa
José Saramago
A Ler por aí... no Castelo de São Jorge, em Lisboa

segunda-feira, 7 de dezembro de 2009

Antigamente

Tudo aconteceu muito perto de casa da minha AvóAgnette, mais conhecida na PraiaDoBispo por AvóDezanove.
Foi num tempo que os mais-velhos chamam de antigamente.

AvóDezanove e o Segredo do Soviético
Ondjaki
A Ler por aí... na Praia do Bispo (Luanda), em Angola

segunda-feira, 23 de novembro de 2009

Jogos Olímpicos de Estocolmo

Vinte e cinco quilómetros: o Francisco cai de novo.
Levanta-se de novo. A voz do locutor é grave e torturada dentro do silêncio absoluto da cozinha. O Hermes e a Íris começam a notar que se passa algo que não conseguem compreender totalmente. Nas ruas de Lisboa, devem estar a acontecer muitas coisas que ninguem consegue imaginar. Nas ruas onde o Francisco passou a correr tantas vezes, devem estar a acontecer muitas coisas. O locutor pergunta-se quanto tempo mais conseguirá o Francisco aguentar. Arrasta os pés no chão. Portugal. Trinta quilómetros. O Francisco cai exausto. O seu corpo deitado é rodeado por pessoas. As minhas filhas, Simão e a minha mulher levantam-se das cadeiras e correm para a telefonia, como se pudessem entrar dentro dela.

Cemitério de Pianos
José Luís Peixoto
A Ler por aí... em Benfica, Lisboa

quarta-feira, 18 de novembro de 2009

Feira da Luz

A terrina de loiça que estava a enfeitar o centro da mesa da cozinha foi comprada pela Maria e pela mãe na feira da Luz. Era de tarde,era domingo e era setembro. Havia anos que a minha mulher andava a comprar peças para oenxoval da Maria. Em todos os aniversários, em todos os natais, a Maria recebia prendas para o enxoval: jogos de lençóis, jogos de toalhas. Às vezes, no fim das manhãs de sábado, a minha mulher chegava do mercado e, entre sacos finos com folhas de alface, com cenouras, entre sacos que tinhamescamas de peixe coladas, tirava panelas, chocolateiras e púcaros de alumínio.

...

Foi essa terrina que o marido da Maria levantou com as duas mãos. Segurou-a pelo prato, segurou-a à altura do peito e, com toda a força,atirou-a para o chão num instante de absoluto silêncio. Os pedaços da terrina ficaram espalhados e inúteis por todo o chão da cozinha; da mesma maneira, ficaram espalhados os botões, os alfinetes, as pontas de lápis, os pedaços de brinquedos e todos os objectos sem uso que estavam guardados no seu interior.

Cemitério dePianos
José Luís Peixoto
A Ler por aí... em Benfica, Lisboa

Repetição

Os últimos dias de maio foram sol insípido: nas ruas de Benfica, perdido de mim próprio à hora de almoço; no cemitério de pianos, com o olhar preso na pequena janela suja que tentava iluminar o impossível e que desistia resignada. Cada momento parecia a repetição cansativa de momentos iguais e sucessivos dos dias anteriores.

Cemitério dePianos
José Luís Peixoto
A Ler por aí... em Benfica, Lisboa

quarta-feira, 21 de outubro de 2009

Machrabiyya

A machrabiyya situava-se diante da fonte de Bain e-Qasrain. Por baixo, cruzavam-se a Rua de en-Nahhasin, que desce para sul, e a Rua de Bain el-Qasrain, que sobe para norte. À esquerda, a via parecia estreita e sinuosa, veladapor trevas que se condensavam na parte superior, ao longo das janelças das casas adormecidas, e que, mais abaixo, se descerravam devido às lâmpadas dos carros de mão, aos candeeiros dos cafés e algumas lojas que se mantinham abertas até de madrugada. À direita, onde não existiam cafés e onde as grandes lojas, cedo, fechavam as suas portas, o caminho embrenhava-se na noite. Aí, tirando os minaretes de Qalawun e Barquq, que emergiam quais visões de gigantes despertos sob as estrelas coruscantes, nada mais prendia a atenção.

Foto de Wael Hamdam retirada do site Usefilm


Entre os Dois Palácios
Naguib Mahfouz
A Ler por aí... no Cairo, Egipto

quinta-feira, 30 de julho de 2009

Crepúsculo

Porém, mal o crepúsculo desce sobre os prédios e as ruas, e o guarda, protegido por uma serapilheira, trepa pelo escadote para acender o lampião, e nas montras baixinhas das lojas aparecem aquelas estampas que à luz do dia se não atrevem a dar nas vistas, a Avenida Névski volta a bulir e a animar-se. Chega então a hora misteriosa em que os lampiões impregnam tudo de uma luz divina e sedutora. São muitos os jovens cavalheiros, na sua maioria celibatários, de sobrecasacas e capotes quentes. Em tudo se sente um objectivo, ou antes, algo que parece um objectivo, qualquer coisa completamente inconsciente; acelera-se o andar de todos, a passada torna-se em geral muito irregular.

Ler por aí... em Agosto 2009

Quatro horas

A partir das quatro, a Avenida Névski fica vazia, é pouco provável que encontremos um único funcionário. Uma ou outra costureira da loja atravessará correndo a Avenida Névski com uma caixa nas mãos; algumainsignificante presa do oficial de diligências, reduzida à miséria, com o seu capote de frisa; algum esquisitão de visita à capital, para quem todas as horas são iguais; alguma inglesa alta e esgrouviada, com um indispensável e um livro nas mãos; algum capataz, homem russo de sobrecasaca em demicoton cinturada pelos sovacos, a barba estreitinha, a vida eternamente alinhavada, o corpo todo sempre a mexer - costas, braços, pernas, cabeça - quando vai respeitosamente pela rua; de vez em quando, um humilde artesão; e não encontraremos mais ninguém na Avenida Névski.

Ler por aí... em Agosto 2009

quarta-feira, 29 de julho de 2009

Três horas

Soam as três horas, a exposição termina, a multidão refaz-se... É uma nova mudança, às três. Chega de repente à Avenida Névski a Primavera: cobre-se toda de funcionários de uniformes verdes. Os famintos conselheiros titulares, áulicos e outros estugam o passo o mais que podem. Os jovens registadores de colégio, os secretários provinciais e de colégio correm a aproveitar a ocasião de passearem pela Avenida Névski com o ar de quem não passou nada seis horas no serviço.

Ler por aí... em Agosto 2009

Hora bendita

Nesta hora bendita, entre as duas e as três da tarde, a que poderemos chamar a capital em movimento na Avenida Névski, acontece a principal exposição de todas as melhores criações humanas. Este exibe uma sobrecasaca catita com pele de castor da melhor qualidade; aquele, um maravilhosonariz grego; um terceiro ostenta excelentes suíças; uma quarta, uma par de olhos bonitos e um chapéu espantoso; um quinto, um anel de talismã no elegante dedo mindinho; uma sexta, o pezinho no seu sapatinho encantador; um sétimo, uma gravata surpreendente; um oitavo, um bigode de pasmar. Soam as três horas, a exposição termina, a multidão refaz-se...

Ler por aí... em Agosto 2009

domingo, 26 de julho de 2009

Meio-dia

Ao meio-dia fazem as suas incursões na Avenida Névski os perceptores de todas as nacionalidades com os seus educandos de colarinhos de cambraia. Os Johns ingleses e os Kock franceses andam de braço dado com os pupilos entregues aos seus cuidados paternais e, com uma solenidade decente, explicam-lhes que as tabuletas sobre as entradas das lojas foram concebidas para, por meio delas, se saber o que se encontra dentro das respectivas lojas. As perceptoras - misses pálidas, eslavas rosadas - caminham majestosamente atrás das suas garotas airosas e serigaitas, dando ordens - que leantem um pouco mais o ombro, que endireitem as costas; em suma, a esta hora, a Avenida Névski é uma avenida pedagógica.

Ler por aí... em Agosto

quinta-feira, 23 de julho de 2009

Ao amanhecer

Ao longo de um único dia, quanta veloz fantasmagoria se desenrola aqui! Quantas mudanças acontecem em vinte e quatro horas! Começemos pelo amanhecer, quando toda a Petersburgo cheira a pão quente acabado de cozer, quando se enche de velhas com os seus vestidos e capas esfarrapadas, em incursões pelas igrejas e contra o transeunte compassivo. A esta hora, a Avenida Névski está vazia: os corpulentos proprietários das lojas e seus caixeiros ainda dormem metidos nas suas camisas de noite holandesas ou ensaboam a bochecha nobre e tomam café; os pedintes são aos bandos às portas das pastelarias, onde o Ganimedes sonolento, que ainda ontem voava como uma mosca servindo chocolate, sai à rua com a vassoura na mão e sem gravata e lher atira bolos e restos de petiscos.

Ler por aí... em Agosto 2009

sexta-feira, 10 de julho de 2009

O charme do velho mundo

- O charme do velho mundo - disse Vasco, içando-se do balcão. - O Arménio não pode comprar isso. Oh, estou quilómetros à frente desse rapaz e ele nem sequer sabe disso. Eu viajei, sabes, e compreendo a mentalidade moderna. Na América, se uma coisa tem cem anos, é venerada. Eu sei porque é que os turistas vão vir.
Teresa acenou que sim com a cabeça, sem saber o que ele tinha dito. As palavras de António ao almoço surgiam aqui e ali, e o seu sentido era o mais claro possível. "Eu estou preparado, sabes." Ela mantinha o rosto voltado para baixo. Mãe Misericordiosa, os sujos mecanísmos de tudo aquilo!
- Ums pratos antiquados - disse Vasco beijando as pontas dos dedos. - Isso vai trazê-los a voar. Sabes o que eu fiz hoje? Uma salada de orelha e rabo de porco, tal como a minha mãe costumava fazer, com um bocadinho de cebola crua, alho, coentros, azeite e vinagre. Tão saborosa que nem a quero vender. Provei-a e disse: "Então, vasco, será justo? Será justo atacar o jovem Arménio com uma arma secreta como esta?" - Rui-se e tossiu e segurou o peito como se ele pudesse fugir a voar.

Alentejo Blue
Monica Ali
A Ler por aí... no Litoral Alentejano














Foto retirada do blog Elvira's Bistrot

terça-feira, 13 de janeiro de 2009

Restelo

- E agora...
O Plano de Urbanização de Groer, e a Encosta da Ajuda.
Terrenos de sobra. Mas poucas verbas para continuar com os bairros económicos.
Bastara ao Estad o invocar "Interesse Público", e passara imediatamente a dono de umas tantas quintas. Contudo, aos detentores de muito capital ninguem exigiria o mesmo desapossamento, sem que se desconfiasse de comunismo.
Então, moradias de luxo.
Uma faixa da encosta que se transformaria em zona excelsa. Compradores de tom, rigorosamente seleccionados. E com o lucro das parcelas asseguraria a continuação do Plano.
A opinião de Groer era favorável.
E não seria a Câmara a ir contra. Não o engenheiro Rodrigues de carvalho.
- ...chamamos-lhe Bairro do Restelo. E é para começar ainda hoje, ao serão.
Duarte Pacheco convocara, para essa mesma noite, o arquitecto Faria da Costa.

A Cova do Lagarto
Filomena Marona Beja
A Ler por aí... em Lisboa (Alameda) e outros lugares

Castelo de Bode

Escureceu.
Arrancou um gerador, e acenderam-se algumas lâmpadas.
- Remedeio, Senhor Ministro. A instalação está pronta, à espera que a corrente cá chegue.
A ligação à rede dependia de se aumentar a potência que era fornecida à Cidade. Mas, enquanto durasse a escassez de carvão, nem pensar.
- Mesmo evitar cortes vai ser difícil.
- Falta-nos a barragem... Não é assim?
Uma grande barragem, no rio Zêzere. Maurice Ginoux viera de Grenoble para os primeiros estudos do Castelo de Bode.

A Cova do Lagarto
Filomena Marona Beja
A Ler por aí... em Lisboa (Alameda) e outros lugares